Do blog: Sem Juízo, por Marcelo Semer
Eventos esportivos fazem empresários e políticos eufóricos, mas ignoram habitação popular e deixam rastros de prejuízos sociais
Os corintianos estão eufóricos com a escolha do futuro estádio de Itaquera para a abertura da Copa 2014.
Os políticos também estão, com a liberação pelo Senado do limite de endividamento de Estados e municípios para a realização das obras.
E, sendo assim, os empresários certamente ficarão eufóricos, tanto mais com a sugerida flexibilidade nas licitações e a redução de impostos de materiais para as construções, forma indireta de investimento público.
Não estarão eufóricos, todavia, muitos moradores de comunidades vizinhas aos estádios ou de pontos de passagens de futuras linhas de transporte.
Estudo divulgado pela Relatoria da ONU para o Direito à Moradia põe a baixo o mito de que a realização de grandes eventos esportivos valorizam os municípios sede, agregando indicadores sócio-econômicos positivos.
Raquel Rolnik, a brasileira que é responsável pelo departamento na ONU, têm alertado para os prejuízos sociais costumeiramente suportados pelas cidades que organizam os grandes jogos.
Estes vão desde o encarecimento desproporcional dos imóveis, empurrando mais pobres à exclusão, até a retirada forçada de moradias populares.
Só na Olimpíada de Pequim, cerca de um milhão e meio de pessoas foram deslocadas de suas residências.
A África do Sul assistiu à constrangedora remoção de um bairro inteiro, com habitantes alojados em contâineres. O retrato bizarro, mas real, parecia o do filme Distrito 9, ficção em forma de documentário, que descreve a favelização de alienígenas numa espécie de "apartheid" extra-terrestre.
Especula-se que a Copa 2014 possa resultar em gastos diretos e indiretos de cerca de quarenta bilhões de reais ao país. Muitos deles, como se sabe, sairão ostensiva ou disfarçadamente, dos cofres públicos, habitualmente econômicos com outras despesas consideradas nem tão essenciais, como saneamento básico e habitação.
As cidades lutaram desesperadamente e festejaram suas escolhas com a expectativa de que reunirão grandes investimentos e farão intervenções bem-sucedidas nos traçados urbanos.
Mas, para além do dinheiro público que sempre se esvai mais rapidamente em tempos de festas, das quais a multiplicação dos gastos do Pan-2007 é um bom e recentíssimo exemplo, é o direito à moradia que costuma ser o principal prejudicado destes grandes eventos esportivos.
Com o pretexto de obras indispensáveis, vendidas como grandes transformações das cidades, os administradores ressuscitam antigos planos de urbanização.
Moradores de comunidades são os primeiros a serem desalojados pelo caminho. Os estádios são inaugurados com pompa, mas as novas moradas, não.
Duas mil e seiscentas famílias da Vila da Luz e da Vila da Paz vão ser removidas em Belo Horizonte, para adequação de anel rodoviário. Como explica Rolnik, o projeto, orçado em cerca de R$ 800 milhões, como é praxe, não prevê qualquer recurso para remoção e reassentamento da população envolvida.
No município do Rio de Janeiro, que também abrigará as Olimpíadas de 2016, cerca cento e vinte comunidades devem ser removidas nos próximos dois anos.
As urbanizações dificilmente levam em consideração as necessidades das moradias populares, porque o intuito, quase sempre, é estético, de limpeza urbana. Urbanizar tem sido constantemente sinônimo de remover, afastar, esconder.
As urbanizações de comunidades populares em regra desprezam vínculos dos moradores com o local em que residem, a utilização de bens públicos e aparelhos sociais, ou ligações econômicas do entorno, aspectos inerentes ao direito de moradia. Para minorar o atávico desprezo com a habitação popular e suas particularidades, diversos planos diretores municipais introduziram o conceito de Zonas Especiais de Interesse Social.
As chamadas ZEIS foram criadas na lei para reconhecer a diversidade de formas de assentamento nos municípios, admitindo características e prevendo exigências distintas nas habitações populares. Seu objetivo é estimular a regularização fundiária das favelas, com a recuperação de áreas degradadas, no entorno das próprias comunidades.
Mas a regulamentação desses espaços é continuamente postergada, em face do privilégio concedido à especulação imobiliária.
O problema da moradia popular não pode ser esquecido, escondido ou simplesmente varrido para debaixo do tapete.
Só na cidade de São Paulo, são cerca de duas mil favelas, que foram criadas, de forma desordenada e perigosa, à margem do crescimento da cidade.
Nenhuma delas servirá de cartão postal para o turismo esportivo, mas representam a moradia de milhões de brasileiros, para os quais a intervenção pública deveria se fazer mais necessária.
No entanto, a desproporção entre carência e distribuição de verbas é tradicional no país.
No âmbito imobiliário, isto se acentua ainda mais. Enquanto parques públicos e áreas esportivas rareiam nas periferias, não há clube privado que não tenha recebido incentivo estatal para sua construção, quase sempre o próprio imóvel em comodato, em áreas extremamente privilegiadas.
O déficit social provocado por grandes eventos em outros países deve servir de alerta, se não para evitar obras ou empreendimentos gigantescos, ao menos para compatibilizá-los com o direito à moradia.
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