Democracia direta foi protagonizada pela população na campanha do morro Santa Teresa, avalia Jacques Alfonsin
Quando apresentou um Projeto de Lei para permutar o terreno da Fase, que se encontra em mais ou menos metade da área onde vivem milhares de famílias no morro Santa Teresa, o Governo do Estado cometeu seu maior erro político. Precisamente porque ignorou leis que refletem conquistas habitacionais históricas do povo brasileiro. É assim que o educador e advogado popular Jacques Alfonsin recorda o PL 388 enviado no final do ano passado ao Legislativo gaúcho, ao observar que uma intervenção na área urbana que envolva a população – tanto no trato de sua dignidade e cidadania, quanto na preservação de sua cultura e identidade -, não pode acontecer sem uma audiência prévia com os moradores.
Tudo isso pode ser encontrado na política urbana prevista pela Constituição brasileira. Para a regularização fundiária das comunidades que vivem no morro Santa Teresa, no entanto, o advogado faz um alerta, salientando que, embora a luta pela permanência da população nas seis vilas encontradas no morro possa contar com diversos dispositivos jurídicos, avanços que efetivem o direito de habitação dos moradores, que podem ainda correr o risco de realocação, só serão possíveis se essas leis forem incorporadas pela participação popular.
Nesta entrevista ao site O Morro é Nosso, o professor considera positiva a nova bandeira erguida pela campanha do Santa Teresa, a criação de um parque ambiental naquela área, além da descentralização da Fase. “O meio ambiente é um bem de uso comum do povo”, resume ele, ao analisar também a vitória das comunidades, dos movimentos sociais, ambientalistas e sindicatos, quando o Executivo estadual retirou do PL 388. É nesse sentido que Alfonsin encontra ainda a grande significação desta campanha: “Quem ainda não acredita em democracia participativa, se tivesse presenciado o que aconteceu no morro Santa Teresa, mudaria de ideia”.
O Morro é Nosso - Pelo Estatuto da Cidade, há famílias do morro Santa Teresa com direito a morar na região. Pelas Constituições Federal e gaúcha, elas têm direito de permanecer no local. Além disso, há uma ação civil pública que exige a regularização fundiária e urbanística no Santa Teresa e uma Medida Provisória que assegura às famílias o direito de moradia. O senhor acredita que, mesmo com todos esses dispositivos jurídicos, ainda são altas as chances de a população ter que sair do morro?
Jacques Alfonsin - Embora eu pudesse responder que, do ponto de vista estritamente jurídico, elas sejam até inexistentes, não há como garantir que a alienação ou a permuta da área não seja tentada outra vez, pois todos os direitos convergentes sobre este imóvel (moradia de milhares de famílias, preservação do meio ambiente, por exemplo) já existiam antes que o Executivo estadual encaminhasse o projeto que pedia autorização da Assembleia Legislativa para a sua alienação. Se uma nova tentativa for empreendida, contudo, a recente vitória do povo da região e seus apoiadores, contra o projeto primitivo, tem grande chance de se repetir, não só pelo fato de que as razões de oposição à pretensão doExecutivo estão muito mais fortalecidas politicamente agora, mas também porque o apoio jurídico dessas razões já obteve reflexo significativo junto ao Poder Judiciário, fator relevante esse que será bem aproveitado, quando for considerado oportuno.
O Morro é Nosso - O que o senhor acha, nos processos de realocação de comunidades, de se priorizar que a comunidade saia unida para não perder sua identidade? Existe alguma disposição sobre isso no direito?
Jacques Alfonsin - Aí residiu, quem sabe, o maior erro político-jurídico do projeto que foi encaminhado a Assembleia. A possibilidade de implementação de qualquer política pública de intervenção em áreas como a do Morro Santa Teresa, que afete, de alguma forma, a população que nelas exerça o seu direito humano fundamental de morar, não pode mais ser feita sem sua audiência prévia. Isso está expresso, entre outras bases legais, no artigo 2º do Estatuto da Cidade, lei 10257 de 2001, que tratam das diretrizes gerais da política urbana, e nos artigos 43 e 45 da mesma lei, que tratam da gestão democrática da cidade. São disposições legais que refletem conquistas populares de extraordinária significação em favor, especialmente, de famílias pobres, com as quais sempre se lidou como se fossem coisas, sem o respeito devido à sua dignidade, cidadania, cultura e identidade, como a própria pergunta lembra. A correção que o Governo do Estado tentou fazer depois, na redação do projeto, quando se deu conta do erro, já tinha contra si uma resistência política de vulto fundada, justamente, na consciência que o povo da região e seus apoiadores tomaram de que ele desrespeitara os direitos humanos e tal desrespeito fechava definitivamente a saída para qualquer diálogo ou negociação.
O Morro é Nosso - Como acontece o processo de regularização fundiária de comunidades que ocuparam uma área urbanística?
Jacques Alfonsin - Direta ou indiretamente, quase todo o Estatuto da Cidade prevê maneiras dessa política pública alcançar efetividade, o mesmo podendo-se dizer da Medida Provisória 2220/2001, particularmente quando a regularização visa garantir o direito à moradia. A lei 11977, do ano de 2009, formalizando o programa federal “Minha Casa Minha Vida”, igualmente procura facilitar essa forma de ação pública, em benefício de populações carentes, inclusive naquilo que diz respeito ao cumprimento da lei dos registros públicos de imóveis. Não se pode dizer que um trabalho desse tipo seja fácil e rápido. Três coisas sobre ele, todavia, devem ser sublinhadas. A primeira, sem dúvida a mais importante, é a de que sem a participação do próprio povo residente na área, em parceria com o poder público, assumindo o protagonismo do que deve ser feito, haverá pouca chance de se obter sucesso num empreendimento desse tipo. A segunda, a de que a inspiração do projeto de regularização não perca de vista o seu principal fim, ou seja, o de alcançar tranquilidade às famílias moradoras das áreas a serem reguladas; de que todo esse trabalho visa garantir-lhes segurança de posse, e não o patrocínio dessa ou daquela ideologia, desse ou daquele grupo de poder, partido, movimento, religião ou o que for. A terceira, a de que para essa garantia já existe instrumentação jurídica capaz de sustentá-la, coisa essa que não deve descuidar da técnica político-jurídica indispensável, sob pena de, em se querendo fazer tudo “de qualquer jeito”, chegar-se ao jeito nenhum.
O Morro é Nosso - Entre as prioridades da campanha em defesa do morro está a criação de um grande parque ecológico, com acesso a toda a população. Além de preservar o restante da mata nativa do Santa Teresa, esse parque poderá criar postos de trabalho às comunidades das vilas. O Ministério Público pode intervir para a implantação desse parque de preservação ambiental?
Jacques Alfonsin - O meio ambiente, de acordo com o artigo 225 da Constituição Federal, é um bem de uso comum do povo, e o artigo 1º, parágrafo único da Constituição Federal, reconhece que todo o poder é dele que emana. Assim, o povo não precisa da tutela do Ministério Público para reivindicar esse superior destino para a área do Morro e pode tomar todas as providências que entender cabíveis para isso. Em vez de efeito negativo, o que eu vejo é uma elogiável proposta de se dar ao povo da cidade mais uma área de lazer e entretenimento, além de proteger melhor o privilegiado meio ambiente que ela abriga. Sobre o Ministério Público, aliás, tem-se de tomar cuidado com alguns dos seus integrantes. Essa instituição não é indivisível e monolítica como se proclama. Além de o seu Conselho Superior ter votado, em abril de 2007, a extinção do MST (!), dois de seus integrantes assinaram um (Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a ex-secretária estadual de educação do atual governo, que descredenciou as escolas itinerantes do mesmo Movimento. Aberrações jurídicas preconceituosas e inconstitucionais como essas, que violam flagrantemente direitos alheios, até de crianças que estão em idade escolar, não comprometem somente o bom nome da instituição. Elas criam no povo um sentimento mais do que justificado de desconfiança e suspeição.
O Morro é Nosso - O que o senhor pode mencionar sobre esse segundo momento da campanha “O Morro é Nosso”, especialmente sobre a proposta de pensar o Santa Teresa em um tripé fundamental que englobe os anseios de todas as comunidades e entidades envolvidas na defesa do morro? Esse tripé corresponde a regularização fundiária, a criação do parque de preservação ambiental e a descentralização da Fase.
Jacques Alfonsin -É um momento de extraordinária significação para todo o processo político de mobilização do povo da região e dos movimentos populares, sociais, que o apoiam. Deve ser celebrado com muita ênfase, porque o Poder Executivo do Estado não retirou de pauta da Assembleia Legislativa o projeto que enviara porque tinha outras prioridades. Ele retirou porque teve de ceder ao clamor público que se levantou na cidade contra o tal projeto, por pressão política de várias fontes populares de poder. As associações de moradores da área, em defesa do seu direito de morar ali, o Sindicato dos funcionários da Fase, as ONGs que defendem o meio ambiente, os segmentos diversos de partidos políticos, as audiências públicas convocadas por Comissões do Legislativo, demonstraram não só um sonoro repúdio da pretensão, como provaram existirem outras alternativas para resolver o problema de descentralização da Fase. Quem ainda não acredita em democracia participativa, se tivesse presenciado o que aconteceu no Morro Santa Teresa, mudaria de ideia. A defesa dos três direitos humanos fundamentais que sustentam, implícita ou explicitamente, o tripé referido na pergunta, moradia, meio ambiente e melhor tratamento socioeducativo aos internos da Fase, continua em plena vigília contra qualquer recaída governamental que tente reencaminhar a alienação do morro Santa Teresa.
Jacques Távora Alfonsin é mestre em direito pela Unisinos, educador e advogado popular, especialista em regularização fundiária e reforma agrária. Ele atua como assessor jurídico de movimentos populares rurais e urbanos. Além disso, é procurador aposentado do Rio Grande do Sul, membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos, um dos fundadores da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap).
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