domingo, 21 de agosto de 2011

As primeiras vítimas de Belo Monte



As obras da hidrelétrica de Belo Monte mal começaram e as suas primeiras vítimas na cidade de Altamira, no Pará, já são visíveis. Apenas no primeiro semestre de 2011, 4.000 pessoas já fixaram residência na cidade e fala-se que a população do município pode saltar dos atuais 105.000 para 150.000 pessoas ainda este ano. Como conseqüência, antes mesmo de as obras se tornarem visíveis, o primeiro grande impacto do projeto foi um aumento explosivo no preço dos aluguéis, inimaginável para qualquer grande cidade brasileira: até 400% em um ano! Um apartamento bom, que há pouco tempo se alugava por R$ 600, de repente só se encontra por R$ 2.000. Casas simples, de famílias, por toda a cidade estão sendo alugadas por R$ 4.000 ou R$ 5.000. Essas pequenas fortunas para o povo de Altamira são migalhas para as empreiteiras que estão se estabelecendo aos montes na cidade. Quem já morava mal, está indo parar nas favelas, barracos em áreas sazonalmente inundáveis assolados por esgoto a céu aberto, mosquitos, doenças e criminalidade.

Pode-se argumentar que esse aumento, naturalmente uma conseqüência da lei da oferta e da procura, com o tempo se ajustará pela mão invisível das forças de mercado. E que cedo ou tarde a cidade vai se redimensionar naturalmente. Pode até ser. Mas e quanto a este impacto sobre a vida das pessoas da cidade durante a construção da usina? Esta situação já era previsível, pois ocorreu o mesmo no entorno das hidrelétricas do Madeira, em Rondônia, e em outras obras dessa natureza em regiões remotas.

Se houvesse alguma preocupação do poder público e dos construtores da barragem com a população, deveria ter sido promovida uma expansão da estrutura urbana de Altamira (uma cidade tão pequena que em 15 minutos pode ser atravessada de bicicleta) antes do início de uma obra de tal proporção, com a abertura e pavimentação de novas vias, iluminação pública e segurança para novas áreas, abundantes no entorno da cidade. Seria algo como a criação de uma “Nova Altamira”, no entorno da velha, com novos bairros, desviando o tráfico de caminhões, organizando o lixo etc. No entanto, o que se observa é que a velha cidade (que em 2011 completa 100 anos) está sendo apenas maquiada.

E muito precariamente, com uns sinais de trânsito novos, umas placas, pintura de faixas brancas e amarelas no asfalto das ruas mais visíveis da beira do cais etc. Nenhuma avenida nova está sendo aberta, nenhuma área nova está sendo iluminada. As ruas dos bairros continuam igualmente escuras e esburacadas como sempre foram. Os que não têm casa própria e dependem de aluguel já estão sentindo os efeitos da barragem na pele.

Mas esta ainda é só metade da história. Com mais ou menos sofrimento individual (alguns vão de fato prosperar economicamente) os seres humanos por enquanto não são as principais vítimas de Belo Monte. Em minha opinião, o primeiro grande impacto de Belo Monte sobre a cidade de Altamira até aqui foi a criminosa destruição, em poucos dias, de uma área de cerca de 20 hectares de florestas primárias de grande porte na beira do rio, visível de praticamente qualquer ponto da cidade. Até junho deste ano, esta cadeia de morros que margeia o rio Xingu ainda estava essencialmente florestada quase como fora registrada pelo cinema, em 1979, no filme Bye, bye Brazil, de Cacá Diegues, na passagem da Caravana Rolidei por Altamira.

O excelente estado de preservação dos morros que margeiam o rio no limite norte da cidade de Altamira se explica pela presença, nesta área, das instalações do 51º Batalhão de Infantaria de Selva do Exército Brasileiro, que protege uma floresta de aproximadamente 1.500 hectares. A área devastada recentemente estendia-se continuamente entre a reserva do Exército e a cidade, e imaginava-se que estava de uma forma ou outra protegida, até que ela foi rapidamente destruída diante de nossos olhos. Sem que o IBAMA tomasse uma providência sequer. 

A área desmatada tinha uma das florestas mais preservadas da região, com alta densidade de árvores com troncos de mais de um metro de diâmetro. Segundo me contaram soldados que conhecem bem o local, tamanduás-mirins eram abundantes naquela área, que também abrigava alguns dos últimos ninhos de arara das proximidades da cidade. A área foi devastada, ironicamente, inclusive com o apoio de colegas que lutam contra a construção da barragem! Explico: parte da área devastada está em um terreno pertencente à Eletronorte e a outra parte supostamente pertence um político local, Domingos Juvenil (PMDB), um ex-prefeito de Altamira.

De uma hora para outra, uma multidão “ocupou” (ou invadiu, depende da posição de cada um) a área, alegando que suas casas serão alagadas pela construção da hidrelétrica e que a Norte Energia (consórcio de empresas que “venceu” o leilão da barragem) não está tomando providências quanto à sua realocação. Portanto supostamente teriam direito àquela área. De fato, a empresa responsável pela construção da hidrelétrica, que tem entre suas obrigações a reestruturação da infra-estrutura da cidade e o reassentamento dos desalojados pela subida permanente das águas da barragem, não está tomando providências concretas nesse sentido. Por outro lado, o ex-prefeito Juvenil também não apresentou comprovação legal da posse de sua parte do terreno, que entrou no pacote da invasão. Cerca de 100 famílias retalharam a área completamente com ruas e terrenos de 10x25m. Ativistas de movimentos sociais e estudantes universitários juntaram-se a estas pessoas na organização do processo. 

Os representantes da Norte Energia são coniventes com o crime, pois logo nos primeiros dias das derrubadas chegaram a dizer a estas famílias que permitiriam a ocupação da área e chegaram a fazer um cadastramento de famílias. Que solução precária essa, não cuidar do assentamento das pessoas e permitir que invadam uma preciosa área de floresta em um oceano de devastação, que estava sob sua responsabilidade!

A polícia chegou a aparecer para desocupar o terreno em fase de desmatamento (ver vídeo no Youtube), mas “misteriosamente” desaparecia nos dias seguintes e as pessoas voltavam e seguiam com a devastação. Depois, a mata derrubada queimou por vários dias, enchendo a cidade de fumaça.

Há poucos dias saiu um mandado de reintregração de posse daquela área, que foi então desocupada. As famílias estão atualmente acampadas em protesto em frente à prefeitura. É muito provável que eles tenham apenas servido de mão-de-obra gratuita para os “donos” do terreno que já queriam a eliminação da floresta. E agora, com o serviço que prestaram, os que lucrarão imensamente com a venda de terrenos, o ex-prefeito Juvenil, a Norte Energia etc., não podem ser responsabilizados legalmente pelo desmatamento. 

Se as famílias ficarão ou não com a área desmatada, é impossível dizer no momento. O grave é que a mata que havia ali já foi destruída para sempre, com raros exemplares da nossa fauna e flora silenciosamente exterminados. Este é apenas um pequeno exemplo, que pude acompanhar de perto, da imensa aceleração nos desmatamentos que acontece em todo o município de Altamira, que recentemente se tornou aquele que mais desmata em toda a Amazônia brasileira.

Se houvesse um mínimo de planejamento para a construção dessa barragem, as pessoas seriam antes de tudo realocadas para bairros atraentes, com infra-estrutura e transporte, evidentemente em áreas já desmatadas, como são quase todos os espaços próximos à cidade. E aquela floresta à beira do rio Xingu, que tivera a felicidade de permanecer preservada até aqui, estando, no fim das contas, em uma terra pública, poderia dar lugar a um parque aberto à população, uma vez que a área adjacente do exército é de acesso restrito. Se realizado desta forma, seria um local para recreação em uma cidade que sofre profundamente com a falta de parques e praças, e que, caso este projeto de barrar o Xingu prossiga, perderá sua grande atração de lazer, que são as praias do rio.

Eu escrevo “caso este projeto prossiga”, pois estão crescendo exponencialmente as manifestações contra a barragem em todo o mundo. No fim de julho, aconteceu em Altamira a “Marcha pela moradia contra Belo Monte”, da qual participou uma expressiva quantidade de pessoas. E cujo manifesto da convocatória reproduzo a seguir: “A vida da população mais pobre de Altamira está cada vez pior. Não temos saúde, água, segurança, educação... E agora nem casa! Muitos de nós estão sendo despejados ou forçados a sair de suas casas – por causa do desemprego, do aumento dos aluguéis e por insegurança de não sermos respeitados pelos que estão tentando construir Belo Monte. Temos que dar um basta nisso! O governo tem que atender às nossas reivindicações. Ao invés de gastar 30 bilhões com empreiteiras, políticos e multinacionais para destruir nossa vida e nossa região. Queremos moradia digna, e não Belo Monte!”.

Em São Paulo, na avenida Paulista, em frente ao MASP, aconteceram este ano várias manifestações contra Belo Monte. Anos depois do impeachment do Collor, os estudantes voltaram a pintar seus rostos em protesto, agora no estilo indígena, em referência aos índios do Xingu que inevitavelmente seriam dizimados com a construção de um complexo de hidrelétricas neste rio. Na verdade, esta é a continuação daquela velha luta. Este ano, o Senado declarou apoio à hidrelétrica de Belo Monte através de um texto de autoria do agora senador Fernando Collor (PTB-AL).

PS: Está sendo organizado um ato mundial contra Belo Monte para o período entre 20 e 22 de agosto, com manifestações previstas nas cidades de Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza, Recife, Brasília, João Pessoa, Porto Velho, Belém e Santarém, além de Toronto, Ontario, Londres, Paris, Berlim, Teerã, Haia, Lisboa, Edimburgo, Taipei, Washington, Nova York, São Francisco e Guadalajara.

Mais informações no site http://www.xinguvivo.org.br/.

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da UFPA (Universidade Federal do Pará) em Altamira, e faz parte do Painel de Especialistas para a Avaliação Independente dos Estudos de Impacto Ambiental de Belo Monte.

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