Do site do Instituto Humanitas Unisinos
"A governadora do Estado do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius, desistiu de vender ou permutar a área imóvel pertencente à Fase (Fundação de assistência sócio educativa), um negócio que ela pretendia contratar, por meio de um projeto de lei encaminhado à Assembléia Legislativa do Estado no fim do ano passado, visando obter dessa a autorização legal", informa Jacques Távora Alfonsin, advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado, analisando uma importante vitória da mobilização e da luta popular.
Eis o artigo.
A governadora do Estado do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius, desistiu de vender ou permutar a área imóvel pertencente à Fase (Fundação de assistência sócio educativa), um negócio que ela pretendia contratar, por meio de um projeto de lei encaminhado à Assembléia Legislativa do Estado no fim do ano passado, visando obter dessa a autorização legal.
Milhares de famílias pobres residentes na mesma área, mesmo sob o impacto da surpresa, já que nenhuma consulta prévia lhes foi feita, mobilizaram-se rapidamente, organizadas por suas associações de moradores, em forte oposição político-jurídica à iniciativa governamental.
Ainda quando o projeto tramitava nas Comissões internas da Assembléia, obtiveram o direito de se manifestar publicamente, numa audiência que lotou o auditório Dante Barone daquela Casa. Levantaram a voz em defesa do seu direito humano fundamental à moradia, acamparam em praça fronteira à Assembléia, conquistaram o apoio de várias organizações populares, partidos políticos, sindicatos, inclusive o dos funcionários da própria Fase, assessorias jurídicas de defesa dos direitos humanos, e de muita gente que defende o meio-ambiente.
Resultado dessa pressão, o governo do Estado demonstrou disposição de emendar o tal projeto, comprometendo-se a respeitar o direito de moradia das famílias moradoras da área e as normas jurídicas relacionadas com o meio ambiente, já que a Fundação Zoobotânica do Estado denunciara quase um ano antes a existência de flora sob risco em grande parte da mesma.
A ambiguidade dos termos da negociação então arranjada junto às/os deputadas/os, entretanto, com grupos de pressão de lado a lado, acentuou justificadamente a desconfiança do povo e da oposição.
Constatou-se existirem motivos graves para a rejeição do tal projeto, emendado ou não. Recursos financeiros do Estado, suficientes para evitar a alienação do imóvel; avaliação do mesmo, feita em valor muito mais baixo àquele que o mercado comporta, naquela área da cidade, fronteira ao estádio de futebol do Beira-Rio (área nobre com ótima perspectiva de preço, com a realização futura dos jogos da Copa do Mundo); dados relacionados com os índices construtivos previstos para a dita área, no Plano Diretor da cidade, em condições de serem modificados por pressão política do adquirente, assim que a alienação se verificasse; a inexplicável pressa de um governo que já está no fim em querer se desfazer de um patrimônio público que domina mais de setenta hectares de terra. Tudo isso denunciava o fato de que - se era mesmo a descentralização da Fase que inspirara o governo do Estado para encaminhar o tal projeto - o seu objetivo era incompatível com o meio por ele escolhido.
Da constrangedora derrota político-jurídica do Poder Executivo do Estado, desistindo do referido projeto, podem ser recolhidas várias lições de grande valia para os movimentos populares, algumas com base legal expressa. Ele não obedecia, sequer, à Constituição Federal, à Constituição do Estado ao Estatuto da Cidade, à Medida Provisória 2220, à lei orgânica do Município de Porto Alegre, conforme provaram as ONGs defensoras dos direitos humanos fundamentais da população residente na área.
Direta ou indiretamente, todas essas regras jurídicas não autorizam mais, como no passado, iniciativas da administração pública sobre terra de seu domínio, que possa ser tomada sem a audiência da população. O vício maior do projeto abortado, pois, foi esse, e ele serve para confirmar de que lado um Poder Público se posiciona. Por mais elogiáveis que sejam os seus alegados propósitos (descentralizar uma instituição que visa garantir medidas sócio educativas a adolescentes), isso não pode ser feito à revelia dos direitos humanos de uma multidão pobre afetada pelos efeitos da lei que, quando menos em sua redação original, o dito projeto ignorava. Costume político histórico e perverso existente no nosso país é bem o de, sendo pobre a população afetada por uma qualquer medida administrativa, permitir-se o seu impacto (não raro eleitoreiro), ignorando os devastadores efeitos sociais e ambientais que a mesma comporte.
No caso, ainda bem que o povo conseguiu organizar-se em tempo. Tivesse ficado quieto, talvez, hoje, chorasse sua omissão. A sua mobilização, a hábil costura dos apoios, inclusive os técnico-jurídicos, sem troca de favores, a radicalidade com que enfrentou propostas paliativas, obtiveram o efeito de desequilibrar até a correlação de forças políticas que o governo do Estado mantém no parlamento gaúcho.
O morro Santa Tereza, assim se identifica de modo mais geral a área em questão, com tudo o que significa para o Estado e o Município, foi salvo em sua beleza, sua flora, seu ar, suas águas, e, principalmente, suas/seus moradores pobres, pela consciência que essas/es conquistaram de sua dignidade e cidadania, do quanto vale a sua organização, do quanto a pressão político-jurídica é capaz de produzir, em defesa dos seus direitos.
Se "a luta continua", como esse povo organizado costuma dizer, até quando vê suas justas reivindicações repelidas, com mais razão deve repetir agora, visando a regularização fundiária e a titulação de suas moradias, a que tem direito por força do Estatuto da Cidade e da Medida Provisória 2220, do programa Minha Casa Minha Vida, em conformidade com a Constituição Federal e com a Constituição do Estado. Viver onde está, morar onde está, não é uma hipótese, é um direito, segundo aquelas normas, tradução legal de sua dignidade e cidadania. É hora, pois, de celebrar a sua grande vitória, junto às/os suas/seus aliadas/os, ciente de que, longe de qualquer bravata, já provou ter energia, força e poder para isso.
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