quinta-feira, 17 de julho de 2014

Famílias recorrem de liminar que determina saída de terreno ocupado na Zona Sul de Porto Alegre

Fonte: Sul21
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Terreno ocupado tem área de mata próxima a condomínios de luxo na zona Sul de Porto Alegre| Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Débora Fogliatto

Em busca de moradia, centenas de famílias montaram cabanas e improvisaram casas em um terreno de dez hectares na Avenida Cavalhada, zona sul de Porto Alegre. A construtora Melnick Even, proprietária da área, já conseguiu, na última sexta-feira (11), liminar que determina a reintegração de posse, com prazo máximo para o dia 26. Nesta quarta-feira (16), o advogado Gilmar Rossa, que representa os moradores, entrará com agravo de instrumento no Tribunal de Justiça do Estado (TJE/RS) para buscar reverter a decisão.

A ocupação foi chamada “Iluminados por Deus”, mas não há traços de nenhuma força divina agindo para ajudar aquelas pessoas: em sua maioria, tratam-se de famílias vindas do bairro Campo Novo e da Vila Resvalo, também na zona Sul, que sofriam com alagamentos quando chovia e o arroio Cavalhada invadia suas casas.

É difícil dizer quantas famílias já estão morando lá. Os números variam de 500 a mil dependendo para quem se pergunta. São pessoas que chegam a todo momento. Enquanto algumas afirmam que a maioria está lá há cerca de um mês, outros dizem ter chegado há uma semana, dez dias ou duas semanas. A área já está começando a ser organizada e cada um respeita o espaço do outro, com demarcações de terrenos e numerações.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Casas ainda estão sendo construídas. Na foto, um homem faz uma habitação simples para uma idosa | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sem água e sem luz, as moradias são divididas em duas localizações: as barracas e casebres de madeira construídas numa área de matagal e as habitações improvisadas feitas à base do esqueleto de um prédio abandonado. Antigamente, o terreno pertencia à Avipal, indústria de laticínios, que o teria vendido à Melnick Even.

A ocupação: área do matagal

Antônio vivia de aluguel em Viamão quando soube do terreno e veio com sua mulher e três filhos. Selene morava sozinha, na rua, e trouxe todos os seus pertences. Robson veio com a mulher e a filha da Estrada Canta Galo e sua mãe, de Campo Novo. As histórias são distantes e parecidas: pessoas que tiveram suas moradias destruídas por enchentes ou que não têm condições de pagar aluguel.

Muitos são jovens casais que até então moravam com os pais, dividindo terrenos ou pequenas casas. É o caso de Angélica e Claudemir da Silveira da Silva, que chegaram com os filhos Rosalina, de 8 anos, e Miguel, de 2, há cerca de um mês. Eles moram na região do matagal, onde montaram duas barracas de acampamento e construíram um galpão com pedaços de madeira e lonas, que serve de cozinha. A água eles conseguem trazer de uma torneira encontrada ali por perto, utilizando galões.

O casal vivia no pátio da casa da mãe de Claudemir, em Campo Novo, quando souberam da ocupação e decidiram “lutar pela terra”. Eles encaram a situação com bom humor e naturalidade. “Tudo é loteria, se não der certo, vamos tentar outro lugar. Mas hoje em dia, com salário mínimo, não se consegue mais nada”, disse Claudemir, que trabalha de vigia no Jockey Club.
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Claudemir, sua esposa Angélica e seus filhos Rosalina e Miguel vivem em duas barracas e um galpão | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Enquanto Claudemir e Angélica falavam da sua situação, que compararam em tom de brincadeira com passar alguns dias no Acampamento Farroupilha, os pequenos brincavam e corriam na terra e pelas plantas, sem se importar em sujar as roupas. Rosalina, vestida de roxo, afirma que “nasceu uma princesa” e que sempre achou que o irmão nasceria um príncipe, quando o pai apontou para as botas do filho dizendo que ele já estava pilchado. “Aqui é o Acampamento Farroupilha Residencial Zona Sul”, riu Claudemir, que usava uma camiseta com desenhos gauchescos.

Seguindo pelo caminho aberto em meio ao mato, avista-se a divisão das casas, com terrenos demarcados com plaquinhas “B.03, B.05” e assim por diante. Na entrada da mata, uma placa maior indica “Rua A”. Onde acabam as árvores e começa um descampado, um cavalo pasta e parece haver menos moradias consolidadas.

Deitados em um cobertor na grama, o casal Jéssica Martins dos Santos e Everton de Abreu Martins aproveitava o sol. Eles fazem parte do grupo cujas casas “encheram de água” quando choveu pela última vez e o valão transbordou, no Campo Novo. “Quando batia água, alagava tudo. Era uma área de risco, todo mundo tentou procurar ajuda e a prefeitura não ajudou”, contou Jéssica.

A ocupação: área do esqueleto dos prédios

Conforme se sobe pelo terreno em direção aos prédios abandonados, uma área com chão de cimento e algumas paredes ainda abriga algumas barracas. Um morador, que não quis se identificar, acredita que é importante montar moradias com madeira, para que fique clara a intenção de permanecer no local.

“Essa questão da gente ter que sair… Parece que os governos esqueceram daquilo que realmente importa, muitas famílias perderam tudo com a chuva”, lamentou. A maioria das pessoas entrevistadas pela reportagem do Sul21 sabia da decisão liminar que determinava sua saída, mas acreditava que será possível permanecer. “Acho que vai dar pra ficar, parece que está vazio há dez anos aqui já”, disse o mesmo morador.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Parte do prédio abandonado também serve como base para moradias | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Uma das pessoas que já têm moradia mais estruturada é Carlão, que possui a única cama avistada pela reportagem no local. Morando lá há 30 dias, numa área com teto, ele também conta com um fogão e uma pia. “Tinha muito assalto com isso aqui vazio, então os vizinhos até comemoraram quando a gente chegou”, narrou.

Já na área do esqueleto, em que alguns espaços têm teto e outros apenas paredes, Roberto, que preferiu não falar seu sobrenome, afirma que morava sozinho há seis meses ali. “Ele até comemorou que agora tem alguém com quem conversar”, brincaram os amigos que estavam com ele. Aliás, quase sozinho: ele tem a companhia de sua galinha, Cocó, que pegou na rua enquanto trabalhava com reciclagem.

Durante a Copa do Mundo, Roberto costumava assistir aos jogos em um bar, onde prometeu levá-la para “comer com massa”. “Parei de ir no bar. Ela virou minha companheira, agora passo fome, mas não como a Cocó”, contou, sob os risos dos outros cinco moradores que confraternizavam e cozinhavam em um fogão à lenha improvisado numa das áreas abertas do esqueleto.

As histórias de tragédias provocadas pela enchente continuam: enquanto Robson Alves e sua esposa Juliana conseguiram sair de onde moravam, a mãe dele permanece na beira do valão com seus cinco filhos pequenos, especialmente porque não tem condições de ir para a ocupação com as crianças, devido à falta de luz e de água no local.

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
A jovem Juliana exige solução para sair do local | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Pra mim, melhor aqui do que na frente do valão. Dá pra pegar água de uma torneira ali”, apontou Juliana, de aparência jovem, mas voz firme. Ela morava em uma casa de madeira que “encheu de água” até decidir se mudar. “Agora disseram que a gente tem 15 dias para sair, mas vão ter que indenizar a gente, porque não temos onde ficar. É uma pouca vergonha nos tirarem daqui e não dar casa”, afirmou.

A decisão judicial

A liminar foi expedida pela Vara Cível do Foro Regional Tristeza da Comarca de Porto Alegre, pelo juiz Mario Roberto Fernandes Corrêa. Na decisão, ele observa que “cada dia novas pessoas estão ingressando no local, bem como estão ocorrendo prejuízos ao meio ambiente em área de preservação e há notícia que comercialização ilegal de lotes”. O magistrado intimou os ocupantes a cumprir a liminar, autorizando o “uso da força pública pela Brigada Militar”, caso não haja cumprimento da determinação judicial. A reintegração foi pedida pela construtura Melnick Even, que preferiu não se manifestar sobre o caso.

Para reverter a decisão, o advogado Gilmar Rossa pedirá um agravo de instrumento, argumentando que a área está abandonada há pelo menos três anos. “Isso pode ser facilmente comprovado pelas condições do imóvel, que teve os portões arrancados, a guarita destruída, o telhado furtado ao longo desse tempo”, alegou.

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
A área conta com escombros e mostra sinais claros de abandono | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
De acordo com ele, são cerca de 500 famílias que querem destinação digna para o espaço e condições de moradia. “Todos os ocupantes vêm de áreas de sub-habitações, casas que constantemente são inundadas pela chuvas, pelos arroios”, explicou Rossa, que é advogado popular e faz a defesa das famílias gratuitamente.

Para buscar alternativas, os moradores contataram a vereadora Sofia Cavedon (PT), que visitou o local no último sábado (12) e entrou em contato com o Ministério Público, conseguindo uma reunião com a Promotoria de Justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística, marcada para quinta-feira (17).

“Queremos conseguir uma mediação jurídica e política, para ver se mobilizamos conjunto de órgãos que tratam de habitação, ver como podem ajudar e qual a situação daquele terreno”, afirmou a vereadora. Os moradores também buscam conseguir uma reunião com a Comissão de Urbanismo, Transporte e Habitação (Cuthab) da Câmara.

Confira mais fotos da ocupação no site do Sul21.

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